A ESTRANGEIRA te habita
Entender a mulher-estrangeira é compreender a si mesmo. A ESTRANGEIRA te habita. Ela é a face escondida da sua identidade. A ESTRANGEIRA nasce quando surge a consciência da diferença, transcende...
A palavra estrangeira tem origem no latim extranea, que deriva de extraneus. Extraneus é formado pela combinação de extra (que significa “fora” ou “além”) e aneus (um sufixo que indica pertencimento ou relação). Portanto, etimologicamente, estrangeira se refere a alguém ou algo que está fora, que não pertence ou não é nativo de um determinado lugar.
A mulher-estrangeira se revela na distância que não devemos ter em relação a nós mesmas. Quando sente que lhe falta pertencimento, a estrangeira inicia a sua travessia do ser. Na tentativa de desvendar esse trajeto, peregrina longas distâncias; mergulha em suas profundezas; escala sua dignidade; confronta suas aberturas, contradições, armadilhas; resgata seus instintos; persegue sua sobrevivência, ao mesmo tempo em que ri e chora dos seus limites, das suas estranhezas, dos seus despotismos mentais e políticos.
Ela prossegue o quão longe for preciso, acompanhada do espírito perspicaz e mordaz da sua contra figura. Aliada a um “eu-filosófico”, um “eu-buscador”, submerge, mas não se afoga. Ela se perde, mas não se desorienta. E, aos poucos, vai se permitindo uma autonomia humana. Passo por passo, vai desvendando a si própria. Até que, em pura simbiose, se transforma.
Seu eu transmuta em outro. A estrangeira é outra e é ela mesma. Eu e ela se opõem, se entendem, trocam até mesmo seus lugares, sendo diferentes e cúmplices do seu desejo de mudar, de compartilhar, de conhecer, de ser.
Essa mulher aprende o espírito do jogo das que não querem parar, das que não querem concordar. Ciente de si, decide não ser mais como os outros, pois reconhece a sua dignidade pessoal ferida que assalta o seu eu. Consciente da sua singularidade, reivindica-a para si. Posiciona-se e assume seu eu comunicando seu sentido pessoal diante da assunção dos seus quereres, das suas verdades.
A estrangeira ocupa de forma explícita, aberta e ostensiva seu lugar no mundo, sabedora de que ao assumir sua singularidade, lança um desafio à identidade do grupo....
Mas, ela aceita o desconforto da sua condição particular que consiste em posicionar-se como diferente em um todo que se considera igual – igual, que, na realidade, representa somente o consentimento e a massa perversa que desencadeiam e acorrentam a potência “do outro” contra e dentro da consciência “do mesmo”. Com sua visão ampliada, já do outro lado da fronteira, enxerga que ou outros negam a sua individualidade, mesmo usando-a.
Ela ganha força deste intervalo que a separa dos outros como de si mesma, e se permite relativizar-se e se relativizar lá onde os demais são forçados a seguir o binário da monovalência. O espaço-tempo da estrangeira é um trem em movimento, um avião em voo, a própria transição que exclui a parada. Ponto de referência? A origem perdida, a radicação impossível, a memória na perpendicular, o presente em suspenso? Nenhum. Ela apenas segue sua travessia, que sempre a remete há uma longa e constante viagem de retorno a si.
De todo modo, permanece na segurança – que resiste e há de resistir -, de poder se estabelecer em si. Passando uma fronteira (... ou duas), a mulher-estrangeira transforma suas inconveniências em um casulo duro e resistente. Com sua visão aguçada, enxerga para adiante e para trás do presente. Com seus saberes, acolhe seus ciclos, seus períodos de expansão, retração e reinvenção. Com a profundeza do coração, reconhece que existe um relacionamento complementar entre sua vida exterior e sua vida interior. É assim que persiste, solta no mundo e ancorada em si mesma.
Conhecedora e guardiã das suas verdades, a mulher-estrangeira nutre seu eu a céu aberto e o mundo ao seu alcance. E prossegue literalmente em efervescência, subindo em ebulição, fluindo para fora, para cima, atravessando o que for preciso, não importa o que seja disposto contra ela – aí incluídas forças externas, aí incluídas a própria mulher.
A estrangeira é então a mulher que não foge à luta. Entre as duas margens patéticas da coragem e da humilhação, contra as quais ecoam os gritos dos outros: “Constrangimento ou escolha?”. A mulher-estrangeira alça a bandeira: “AUTONOMIA HUMANA!”.
Ela consegue provar seu valor, mesmo nas batalhas que nunca buscou, mas que confronta repetidas vezes. Apesar de tudo o que tenha dado errado, a mulher que busca viver suas verdades, sempre contorna suas circunstâncias. Apesar de ser arrasada ou tratada injustamente, ela tem outro eu, um eu primordial, radiante e incorruptível que permanece incólume para sempre.
Nunca subestime a resistência de uma estrangeira. Ela enfrenta o trivial e a sua brutalidade, se afastando e se emergindo nele. Enfrentando-o mesmo que fugitivamente. Em viagens dentro e fora de si, em metamorfoses, em resistência e persistência que se transformam em histórias a serem contadas. Contadas, para que outras mulheres, ainda dormentes ou temerosas, despertem e compreendam que estamos todas para nos tornar estrangeiras nesse mundo como nunca alargado, como nunca heterogêneo sobre a sua aparente unidade estrutural, científica e midiática.
Porque se a estrangeira tem alguma coisa, ela tem uma vida feita de evidências – nem catástrofe, nem aventura (apesar de que tanto uma quanto a outra possam acontecer), mas apenas uma vida em que seus atos são eventos, pois implicam escolhas, rupturas, adaptações, até mesmo surpresas e truques, mas sem nenhuma cotidianidade... Sem descanso, ela sabe muito bem que logo mais terá que começar, terminar ou começar de novo. Pois não é mais uma daquelas mulheres que apenas sobrevive. Ela carrega em si “la voglia”, a vontade, a audácia, a dança, a perseverança das que querem viver uma vida.
Eis que aqui me despeço, a estrangeira que vive em mim pede passagem, ela deve seguir sua travessia enfrentando outros momentos chaves da sua história. Pois a mulher-estrangeira sente o vento em popa. Um vento que bagunça, disturba, mas que a leva em direção ao seu próprio desconhecido e em direção a não se sabe qual porvir.
Com amor a tudo aquilo que podemos ser,
Farah Serra
Entender a mulher-estrangeira é compreender a si mesmo. A estrangeira te habita. Ela é a face escondida da sua identidade, o espaço que destitui a sua morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia. A estrangeira nasce quando surge a consciência da diferença e transcende quando nos reconhecemos todos unos (únicos, singulares).
Coletânea Estrangeiras - Histórias sobre a travessia do ser
A coletânea Estrangeiras surge para evocar a travessia de todas as mulheres que se tornaram, antes de tudo, estrangeiras a si mesmas; de todas aquelas que transcenderam, e continuamente transcendem, suas fronteiras mais estigmatizadas para encontrar “ao de lá” seu verdadeiro ser; de todas que literalmente desembarcaram em territórios estrangeiros.
Idealização e organização: Farah Serra
Producação: In-Finita Portugal
Abertura do chamado das autoras 20 de novembro!
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